Desjudicialização no Direito de Familiar e Sucessório

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Apesar de a principal forma de resolução de eventuais impasses nos ambientes familiar e sucessório ainda perpassar o acionamento do Poder Judiciário, fato é que as atividades denominadas “extrajudiciais” representam possibilidade que, para além de valorizar a autonomia dos sujeitos envolvidos, simbolizam caminho menos oneroso e mais ágil para a resolução de diversas demandas.

Para a adequada análise sobre as possibilidades vinculadas ao tema impõe-se a verificação sobre a competência do Conselho Nacional de Justiça para a formulação de normas voltadas à fiscalização dos sistemas notarial e registral. Para tanto, serão objetos de análise no presente escrito as Resoluções e Provimentos expedidos pelo CNJ nos últimos anos que, ainda que indiretamente, são aplicáveis em matéria familista e sucessória.

A Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, “disciplina a aplicação da Lei nº 11.441/07 pelos serviços notariais e de registro”, viabilizando, ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, a realização de “inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa”, ou seja, extrajudicialmente. Por meio da Resolução nº 326, de 26 de junho de 2020, a Resolução nº 35/2007 passou a vigorar com a inclusão da extinção consensual de união estável por via administrativa.

Essa possibilidade foi expressamente prevista no âmbito do Código de Processo Civil de 2015. O art. 610 do diploma processual estabelece no §1º que “Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras”. O caput de referido artigo menciona que, em havendo testamento ou interessado incapaz, o procedimento de inventário deverá ser realizado judicialmente; no entanto, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.808.767/RJ, em 15 de outubro de 2019, sob relatoria do Ministro Luiz Felipe Salomão, fixou o entendimento pela possibilidade do “inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente”.

Com a superveniência da pandemia por covid-19, em março de 2020, a logística para fins de realização das solenidades de celebração de casamentos precisou ser alterada. Em um primeiro momento, os registradores civis suspenderam a celebração dos casamentos, em atendimento às normas administrativas que passaram a proibir a realização de eventos sociais. Algumas normativas estaduais, no entanto, “passaram a disciplinar a realização da solenidade e do registro de casamento por meio de videoconferência, com regras específicas”.

Essa necessidade de modificação do procedimento diante do cenário pandêmico, com valorização da utilização de mecanismos tecnológicos para fins de celebração de atos que, até então, eram realizados exclusiva ou majoritariamente de maneira presencial, refletiu-se também na prática de outros atos notariais. O Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, sobreveio meses após o início do isolamento social imposto pela pandemia, dispondo “sobre a prática de atos notariais eletrônico utilizando o sistema e-Notariado”, além de criar a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dar outras providências.

Tem-se, por meio de referido Provimento, a aliança entre a utilização de mecanismos tecnológicos que possibilitam a realização de procedimentos solenes à distância e a manutenção de certa rigidez procedimental necessária à prática de atos dotados de fé pública. Cotejando o teor do Provimento nº 100/2020 com o previsto na Resolução nº 35/2007 – bem como no Código de Processo Civil de 2015, ao ampliar o rol de procedimentos passíveis de realização extrajudicial – verifica-se a viabilidade de realização de atos notariais eletrônicos, via e-Notariado, para fins de assinatura de escrituras públicas de inventário, partilhas, divórcio extrajudicial, separação consensual ou dissolução de união estável.

Uma das grandes contribuições que os meios tecnológicos trazem ao Direito de Família e Sucessões é a superação das noções tradicionais de tempo e espaço. Se antes, havia necessidade de deslocamento e reunião em sala física, hoje, ela ocorre virtualmente, de forma que o espaço do qual se fala já não seja mais o mesmo. E, com relação ao tempo, pode-se afirmar que também há certa relativização, uma vez que a sincronicidade exigida para a perfectibilização do “ato jurídico virtual” chega a cada local do mundo em um fuso horário distinto.

A Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, “dispõe sobre a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências”, atribuindo competência ao Conselho Nacional de Justiça, em seu art. 4º, para a organização de “programa com o objetivo de promover ações de incentivo à autocomposição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação”. A Lei nº 13.140/2015, que “dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”, já previa no art. 42 sua aplicabilidade, “no que couber, às outras formas consensuais de resolução de conflitos, tais como mediações comunitárias e escolares, e àquelas levadas a efeito nas serventias extrajudiciais, desde que no âmbito de suas competências”.

Anos depois, por meio do Provimento nº 67, de 26 de março de 2018, o CNJ regulamentou os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e registrais brasileiros. A cultura do litígio ainda se coloca como preponderante na sociedade contemporânea, entretanto, iniciativas das serventias cartorárias – no Tabelionato de Notas e nos Registros – podem ser destacadas. É exemplo o 26º Tabelionato de Notas de São Paulo: o site da serventia apresenta o serviço, esclarece as metodologias e apresenta um formulário para o cadastramento de interessados. Trata-se, sem dúvidas, de uma excelente via para dirimir conflitos nas relações civis. Em se tratando de possibilidades de mediações online, destaca-se uma larga utilização, em vários países das chamadas ODRs (Online Dispute Resolution).

Analisando o teor da Resolução nº 175, publicada em 14 de maio de 2013, tem-se a regulamentação “sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo”. Esta Resolução corrobora princípios basilares da ordem jurídica brasileira, como o princípio da igualdade, da proibição de discriminação, da pluralidade na formação familiar e o do livre desenvolvimento da personalidade.

A viabilidade de celebração do casamento de maneira virtual, tal qual visto anteriormente, igualmente se aplica à hipótese de habilitação e formalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, destacando-se que um dos méritos da Resolução nº 175/2013 está justamente em “pacificar e uniformizar a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo o Brasil, que assim deixa de depender da convicção pessoal de cada uma das autoridades envolvidas”.

De se destacar que o Provimento nº 37/2014 do CNJ, autorizou o registro das uniões estáveis, inclusive entre pessoas do mesmo sexo, no Livro ‘E’ do Registro Civil das Pessoas Naturais do domicílio dos companheiros, estendendo-se tal possibilidade tanto às uniões estáveis formalizadas por meio de escritura pública quanto às decorrentes de decisão judicial, “podendo ser formalizada não só a constituição, mas também a sua dissolução”[3].

Seguindo a mesma tendência de regulamentar o exercício de direitos personalíssimos, o Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, alterado pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019, trata “sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro ‘A’ e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida”. No âmbito desse mesmo provimento, porém, encontrava-se interessante limitação ao exercício de direitos pelos particulares: embora fosse reconhecida a viabilidade de reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva, o art. 14 do Provimento nº 63/2017, afirmava que “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo filiação no assento de nascimento” (grifamos).

A partir da vigência do Provimento nº 83/2019, o art. 14 do Provimento nº 63/2017 passou a vigorar acrescido de dois parágrafos: o primeiro, afirmando que “somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno”; o segundo, dispondo que “a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial”. Logo, verifica-se pelo menos a priori a manutenção de uma limitação ao número de pais ou mães que podem figurar no campo filiação do assento de nascimento, o que consiste em uma limitação ao exercício de direitos pelos indivíduos, como já destacamos em outra oportunidade[4].

No cenário pandêmico, respeitadas as limitações a atendimentos presenciais nos Registros Civis de Pessoas Naturais, foi mantido o encaminhamento de reconhecimentos de filiações – tanto biológicas quanto socioafetivas. No entanto, deve-se destacar iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, implementada pelo Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP): o serviço, oferecido pelo TJMG desde 2011, já possibilitou quase 20 mil reconhecimentos de paternidade, sendo todos os encaminhamentos necessários realizados pelos servidores do CRP. De acordo com notícia divulgada na imprensa, as audiências migraram para o ambiente virtual em março de 2020, com o início da pandemia: “foram mais de mil sessões virtuais realizadas desde março do ano passado e 2021 tem chances de superar o número alcançado em 2020, de 682 atendimentos, já que em quatro meses chegou à metade desse total”. O atendimento, realizado via plataforma Cisco Webex, disponibilizada pelo Conselho Nacional de Justiça, tem sido aplicado tanto ao reconhecimento de paternidade biológica quanto socioafetiva, demonstrando como as plataformas digitais – ainda que de maneira bastante singela – podem contribuir para a efetivação dos direitos dos sujeitos em um contexto como o atualmente vivenciado.

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